A maternidade é um tema caro a vida das mulheres,
logo ao feminismo. Discutir a maternidade de forma política é tanto apontar o
direito da mulher de ser mãe e de vivenciar uma maternidade plena, consciente e
desejada quanto apontar o direito da mulher de escolher não ser mãe, porque
experienciar a maternidade não está nos planos de vida dela. Ambas as pautas do
ser ou não ser mãe sugerem outras pautas para discussões, tais como maternidade
compulsória, romantizada e socialmente construída para oprimir as mulheres,
silenciamento das mulheres que são mães dentro e fora do movimento feminista e
a repressão que as mulheres que (não) são mães sofrem, socialmente.
Ser mãe deve ser uma escolha, não uma obrigação para
cumprir uma convenção social pintada de "destino de mulher". Ter um
útero e ser fértil não é pré-requisito para uma mulher querer ser mãe ou ter
necessariamente que ser mãe. Nós mulheres somos mais que nossos úteros. Somos
mais que a romantização social materna que diz que a mulher só é plenamente
feliz, completa e realizada quando tem filhos. Somos mais do que o Patriarcado
quer que sejamos. Somos mais que as escolhas que fazem por nós, como a escolha
de ser mãe. Que fique claro, escolher não ser mãe é um direito reprodutivo.
A maternidade deve ser uma opção na vida das
mulheres, elas devem poder optar por serem mães porque querem, porque se sentem
preparadas, porque têm vontade de ter filhos. Não há problema nenhum no fato de
uma mulher desejar ser mãe. Para a mulher que quer ser mãe, ter filhos pode ser
uma coisa boa, logo escolher ser mãe também é um direito reprodutivo. Acredito
que a problematização política acerca da maternidade deva se centrar na
construção social de uma maternidade compulsória e romantizada, não nas escolhas
pessoais das mulheres.
A maternidade é compulsória porque as mulheres são
obrigadas a serem mães. O aborto criminalizado é a prova disso. É óbvio que o
aborto não é contraceptivo, mas o fato de ele ser criminalizado desconsidera o
fato mais geral de que os métodos contraceptivos são falhos e de que nós não
temos uma educação cultural e escolar que informem as mulheres sobre sexo
seguro. A responsabilidade sobre a prevenção de uma gravidez, os gastos com
pílulas, com as consultas aos ginecologistas, a atitude de tomar bombas de
hormônios que muitas vezes trazem efeitos colaterais devastadores, é toda da
mulher. Até parece que a mulher engravida usando o próprio dedo. Para os
homens, esses seres "masculosos", sobram a escolha de querer ou não
transar com camisinha, sendo essa ainda responsabilidade da mulher comprar e
carregar sempre uma consigo dentro da bolsa, claro, isso de forma escondida,
porque se alguém perceber que ela tem um preservativo na bolsa, ela virará
instantaneamente, com efeito superior ao de pó de pirlimpimpim, a ''puta que dá
para todo mundo'', a ''promíscua'', a ''mulher rodada'', sem respeito, sem
dignidade, sem direito a ter uma vida sexual ativa e segura.
A maternidade é compulsória e romantizada porque há
uma compulsão social que legitima a ideologia misógina de que a mulher só é uma
"mulher de verdade", completa e realizada, quando ela tem filhos.
Nesse quadro, a mulher que ousa dizer que não quer ser mãe tem que aturar os
mais variados discursos repressores com o selo de fiscalização de vida
feminina. Entre esses discursos está o de que a mulher que não tem filhos
poderá se arrepender futuramente, como se não houvesse também a possibilidade
de que uma mulher pode muito bem ter filhos e depois se arrepender futuramente.
Nem toda mãe ama seu filho. Existem mulheres que são mães e chegam a odiar seus
filhos, crianças em situação de maus-tratos são a prova disso. Mães abusivas
são a prova disso. Não existe amor materno inato. Assim como não existe amor de
nenhum tipo inato, como se fosse uma essência, não um sentimento a ser
desenvolvido. Ora, onde está o instinto materno das mães que expulsam suas
filhas trans de casa? Onde está o amor materno inato das mães que rejeitam suas
filhas lésbicas?
Que a maternidade traz alegrias para muitas mulheres
eu não tenho dúvidas, contudo para uma parcela de mulheres, sobretudo as que
pertencem às classes sociais mais desfavorecidas, ela é, muitas vezes, usada
como mecanismo de opressão. Exige-se que a mulher que é mãe seja 100% abnegada,
que ela renuncie aos seus planos e aspirações em função do seu filho, que ela
se doe completamente a ele, viva ao redor da vida dele, se limite a ele, ao
ponto de que ela, ao ser mãe, deva deixar de ser mulher. Ser mãe e sair com as
amigas? Coisa de puta. Ser mãe, trabalhar fora de casa e deixar o pai ou uma
babá cuidando de seu filho? Ah, mãe desnaturada! Ser mãe e gostar de se cuidar,
psicológica ou fisicamente? Frescura, mãe não precisa disso de vaidade. Ser mãe
e solteira? Vagabunda. Ser mãe e solteira e se relacionar com alguém que não
seja o pai da criança? Vagabunda. Ter sonhos? Ora, mãe não sonha para si mesma,
mas para seus filhos. Mãe tem que estar vinte e quatro horas servindo seus
filhos, pois se alguma coisa acontecer com eles, a culpa será dela,
independente do pai das crianças aparecer ou não na história. E a educação? Tarefa
de mãe. Lavar as roupas, fazer a comidinha, cuidar nos momentos de doença?
Tarefas de mãe. Reuniões escolares? Tarefa de mãe. Formação de valores? Tarefa
de mãe. Filho fez algo de errado? Culpa da mãe. Filho sofreu um acidente? Culpa
da mãe que não o protegeu. Filho se mete em confusão? Culpa da mãe que não o
educou direito. Todas essas práticas discursivas constituem as relações sociais
que diariamente oprimem, reprimem, silenciam e subjugam mulheres que são mães e
que estão em situações de vulnerabilidade social.
Falar em maternidade é também fazer um paralelo com
a paternidade. A paternidade não é socialmente compulsória e romantizada, os
machos podem não só escolherem se serão ou não pais, como também se cuidarão ou
não de seus filhos. Aos descrentes, somente no Brasil mais de 5 milhões de
crianças não têm o nome do pai no registro de nascimento. Se mais de 5 milhões
de pais recusaram-se a dar o nome, imaginemos o resto que é na verdade o
essencial: o amor, o amparo e o cuidado aos seus filhos. Como sempre que uma
feminista discute essa pauta, aparece alguém para falar (chorar) que é ''melhor
abandonar que abortar'', adianto que abandonar uma criança, um ser humano
dotado de senciência, não é o mesmo que abortar um organismo não autônomo que
nem senciência e sistema nervoso central tem, em outras palavras, um organismo
não individualizado que não pensa, não sente dor, não sente fome, não sente o
fardo de saber o que é ser algo. É absurdo que usem esse discurso para
romantizar o fato de que enquanto os machos escolhem livremente não assumirem
seus papéis de pais e vivem normalmente suas vidas, milhares de mulheres pobres
que não quiseram ser mães morrem em clínicas clandestinas.
Como se não bastasse tudo isso, o próprio feminismo
não tem visibilizado e acolhido as mães como deveria. Em espaços de
militâncias, em geral, elas são apagadas ou mesmo excluídas, não têm voz, não
têm vez. Participei de muitos grupos feministas nos últimos dois anos.
Administrei por cerca de um ano alguns. E afirmo que ao lado do apagamento das
mulheres negras, gordas e trans, está o das mães. Chego a dizer que muito mais.
Nesses espaços poucas vezes vi pautas contemplando as mulheres que são mães,
mas várias vezes vi discursos de ódio contra crianças, discursos
preconceituosos contra mães, como se lutar contra a maternidade compulsória
equivalesse a discriminar crianças e mães.
Diante desse quadro de discursos e
práticas opressoras contra mulheres que são mães, fica evidente que essas
mulheres precisam do feminismo tanto quanto as que não querem ser mães ou que
não são. E nenhuma mulher que é mãe, provavelmente, vai se sentir acolhida em
espaços que preguem um "mundo livre de crianças", em uma militância
elitizada que não se preocupa de, em eventos, aderir espaços para mães e ''suas
crias'', em se sentir representadas por mulheres que alegam odiar crianças,
como se dizer "odeio crianças" equivalesse a "não gosto da ideia
de ser mãe".
Nós, feministas, podemos acolher as mulheres que não
querem ser mães, que não são mães, combatendo, em nossa luta, toda e qualquer
prática social que discrimine e reprima a escolha dessas mulheres, assim como
também podemos acolher as mulheres mães e suas crias, que tanto precisam do
movimento feminista. Parodiando Adélia Prado, feministas são desdobráveis. Nós
somos! Se tem uma coisa que a gente pode é poder.
Lizandra Souza.
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Feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente!