Belmiro de Almeida - Arrufos, 1887 |
A história do adultério
é a história da duplicidade de um modelo de comportamento social machista,
possuidor de uma moral dupla, segundo a qual os homens, desde quase todas as
sociedades antigas, tinham suas ligações extraconjugais toleradas, vistas como
pecados veniais, sendo assim suas esposas deveriam encará-las como
"pecados livres", que mereciam perdão, pois não era o adultério
masculino visto como um pecado muito grave (a não ser que a amante fosse uma
mulher casada), enquanto as ligações-extraconjugais femininas estavam ligadas a
pecados e a delitos graves que mereciam punições, pois elas não só manchavam a
honra e reputação da mulher adúltera, mas também expunham ao ridículo e ao
desprezível seu marido, o qual tinha a validação de sua honra e masculinidade
postas em jogo.
Esse
padrão social duplo do adultério teve sua origem nas culturas camponesas
"juntamente com a crença de que o homem era o provedor da família e era
também seu dever reproduzir e continuar sua linhagem" (Oliveira, 2007, p.
23). Daí a tolerância social em relação as ligações extraconjugais masculinas e
a condenação aos mesmos atos praticados pelas mulheres.
A
primeira vez em que o padrão duplo para o adultério foi registrado na
civilização ocidental em códigos legais foi entre 1800 e 1100 a. C., em cidades
da antiga Mesopotâmia (vale do Rio Tigre e do Eufrates). As partes desses
códigos que se referiam à posição legal e aos direitos e deveres das mulheres
diziam que elas tinham que manter sua virtude, da mesma maneira como pensavam
os outros povos agrários. Foi a primeira evidência escrita da subjugação da
mulher nas sociedades agrícolas da antiga Mesopotâmia, na qual as mulheres eram
consideradas bens e propriedades. (OLIVEIRA, 2007, p. 23).
Na
Idade Média, o adultério da mulher era encarado socialmente como inaceitável e
passível de punições severas tendo em vista que a mulher era concebida como uma
propriedade sexual masculina, logo o adultério poderia ser punido até com a
pena de morte. Já o adultério masculino não era nem visto como adultério, isto
é, como infidelidade, já que ao homem era permitido/liberado ter relações
extraconjugais, logo eles não recebiam punições nem julgamentos morais, pois
eles eram vistos de forma legal e socialmente como seres superiores, ideia
legitimada culturalmente pelo patriarcalismo. (ARAÚJO, 2002; CAVALCANTI, 2007).
O
patriarcado é o sistema de dominação-exploração da mulher pelo homem, ou seja,
é um sistema de opressão modelado pela ideologia machista (SAFFIOTI, 1987, p.
50) no qual o homem detém o poder e, por isso, o masculino é universalizado
como categoria social dominante enquanto o feminino e/ou tudo o que a ele é
relacionado é subordinado socialmente. Uma das principais formas de articulação
e sustentação desse sistema de opressão de gênero se dá através da assimetria
com que homens e mulheres são tratados socialmente e com o valor moral díspar
que é dado ao comportamento de ambos em sociedade, como ocorre, por exemplo,
com a dupla moral do adultério: mulheres condenadas e homens absolvidos pelos
mesmos atos de infidelidade conjugal.
Alguns
exemplos de “castigos” contra aquele que cometesse o adultério nos vales do
Tigre e Eufrates incluíam, no caso das mulheres, execução ou ter seu nariz
decepado. Outros exemplos encontrados em registros de demais povos eram o
açoitamento público, a marcação com ferro quente, o espancamento, a mutilação
dos genitais, a decepação das orelhas, a retalhação dos pés, o abandono, a
morte por apedrejamento, fogo, afogamento, sufocamento, arma de fogo ou golpes
de punhal (Fisher, 1995, p. 89 e 98). (OLIVEIRA, 2007, p. 25).
Na República do
Kiribati, uma ilha localizada na Micronésia, Oceano Pacífico, existem registros
de casos recentes (de menos quatro décadas) de mulheres que tiveram as pontas
de seus narizes cortados pelo seus companheiros como forma de punição pelo
adultério (OKIMURA; NORTON, 1998). Cortar o nariz da mulher adultera é uma
forma de marcá-la esteticamente pelo seu “erro”, deixa-lo exposto e, ainda, torná-la
menos atrativa sexualmente, isto é, o objetivo com a desfiguração é atingir a
atratividade da mulher, para que ela, após ser abandonada pelo conjugue, fique
sozinha e marcada socialmente como adúltera e indigna.
As
punições contra as mulheres em Kiribati começam menos severas até chegar ao
corte do nariz. Primeiro, o marido pode bater na esposa que se vestir
inapropriadamente, depois pode bater nela na frente dos seus parentes, caso
seja vista conversando em público com outro homem. Por último, em casos de adultério,
ele corta-lhe a ponta de seu nariz, destruindo-lhe a sua beleza facial e
deixando para sempre uma marca permanente e pública do seu mau comportamento.
(OLIVEIRA, 2007, p. 25).
Em algumas civilizações
antigas, o adultério poderia resultar em punições legais e/ou morais para ambos
os gêneros, porém ainda assim o conceito de adultério era duplo. A mulher era
considerada adúltera só em manter relações extraconjugais com outro homem,
logo, segundo a moral vigente, merecia punição. Os homens só eram alvos de
punições legais, morais ou severas se a mulher com a qual eles traíram suas
esposas fossem casadas, pois nessa situação eles estavam maculando a honra de
outro homem, o marido de sua amante, visto como proprietário da esposa, logo o
mesmo tinha legalmente ou moralmente o direito de assassinar não só a mulher
adúltera, mas também seu amante. Na cultura ocidental o crime de adultério
passou a ser punido legalmente com a pena de morte a partir da legislação do
imperador Constantino I.
Dessa forma, o adultério
feminino era visto como inaceitável independente se o homem-amante da mulher
adúltera era ou não casado, já o adultério masculino era definido como imoral a
partir do momento em que a mulher-amante do adúltero fosse casada, pois nesse
caso, a honra e masculinidade de outro homem estava sendo abalada socialmente.
Fisher
coloca que entre 516 a.C. e a destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C.,
os costumes sexuais judaicos passaram a ser cada vez mais identificados com as
leis de Deus. Até então, no judaísmo, poucas práticas sexuais eram consideradas
imorais. Aos homens, ao contrário das mulheres, era permitido livre acesso às
prostitutas, concubinas, viúvas, criadas domésticas, e só lhes era interditado
o relacionamento sexual com uma mulher casada, pois os relatos sagrados de Deus
diziam para “não cobiçar a mulher do próximo”. (OLIVEIRA, 2007, p. 18).
Em algumas sociedades
modernas essa discrepância também se acentuava. Um homem para ser considerado
adúltero, tinha que manter financeiramente uma outra mulher, além de sua
esposa, ou seja, proporcionar a outra mulher que não sua esposa uma "casa
montada", ou seja, o homem não era punido exatamente por ter relações
sexuais fora do matrimônio, mas por sustentar outra mulher, sua amante. A
mulher era considerada adúltera só em manter relações sexuais com outro homem
que não o marido.
Essa é uma problemática
intrinsecamente ligada a projeção social da honra dos “homens de bem”. A
tradição da honra a projetou não só em conceito genérico como algo público, mas
também enquanto prática social, isto é, a honra, enquanto bom nome, fama, dignidade,
reputação, é pública e precisa ser publicizada. Dessa forma, não bastava ao
indivíduo ser honrado, era necessário que sua honra fosse reconhecida
socialmente. (DÓRIA, 1994). Nesse contexto, a honra masculina se explicitava
principalmente nas questões ligadas a sexualidade e práticas sexuais das
mulheres da família.
Uma das explicações
para essas discrepâncias está no valor dado a castidade feminina numa sociedade
(me refiro aqui em especial a Ocidental, tendo em visto que em muitas
não-ocidentais até hoje isso se acentua) que legitimou durante séculos o
mercado matrimonial patriarcal e patrimonial, no qual a mulher-noiva quando
casava saía da tutela paterna para a tutela do marido, passando, portanto, para
a sua dependência, logo ela era concebida e tratada como objeto de troca de um
homem ao outro. O pai, e depois o marido, eram legalmente responsáveis por ela,
que era vista como incapaz, logo era socialmente recomendado, e culturalmente
legitimado, que a mulher honrasse e obedecesse a seu pai e a seu marido (DUBY,
PERROT, 1993).
O controle da
sexualidade feminina, dessa forma, funcionou para legitimar essa ideia de que a
mulher devia honrar seu pai e marido, pois sua castidade estava estritamente
ligada a honra deles. Tanto que era esperado que a noiva se mantivesse virgem
até a noite de núpcias e que posteriormente fosse fiel ao seu marido, para
assegurar a este não só sua honra, mas também sua descendência legítima.
Uma outra explicação
para a existência desse padrão social de comportamento duplo pode ser
relacionada a objetificação e hiperssexualização das mulheres, as quais eram
consideradas propriedades sexuais dos homens, tanto que legitimava-se
(legitima-se?) que elas só poderiam transar com seus maridos,
"proprietários", pois seu valor, ligado a expressão de sua
sexualidade e comportamento sexual,
diminuiria caso a mulher fosse "usada" por outro homem que não
fosse seu "proprietário legítimo", isto é, marido (DUBY, PERROT,
1993).
Diante disso, a honra
masculina e/ou a valiosa masculinidade dos homens tornou-se dependente da
castidade ou fidelidade feminina, pois o marido enganado não era só alguém cuja
virilidade era questionada por ser visto como o macho incapaz de satisfazer
sexualmente sua mulher, mas também como alguém que não soube administrar o
próprio lar.
Atualmente, mesmo nas
sociedades ditas mais avançadas, democratizadas ou menos dogmáticas e
conservadoras, essa moral dupla, assim como a mentalidade social machista de
conceber, mesmo que de forma camuflada, a mulher como sendo um objeto sexual do
homem, sendo sua castidade relacionada a virilidade dele, ainda vigoram, apesar
de o sistema de punição legal não mais existir.
No Brasil, por exemplo,
apesar de o adultério não ser criminalizado, assim como em outras sociedades
ocidentais, a moral dupla e machista
ainda é culturalmente legitimada a medida que homens que traem suas
companheiras têm seus erros amenizados, camuflados ou ainda exaltados com
discursos como "é coisa de homem trair", "é coisa de homem não
ficar com uma mulher só", "todo homem é infiel", "homem é
pegador por natureza", enquanto a mulher que trai o companheiro é vista
como "puta", "vadia", "piranha", assim como a
amante do homem adúltero é vista, sendo que ambas (a mulher adúltera e/ou a
amante) geralmente sofrem agressões físicas e morais, o que é legitimado e
naturalizado socialmente, pois as pessoas acham justo o homem agredir sua
esposa porque ela o traiu, pois a masculinidade e honra dele "precisam ser
defendidas", ele precisa "limpar sua honra" e afirmar a própria
masculinidade. O que é feito através da exposição pública, da agressão
física ou mesmo através do assassinato de
sua companheira, o que revela a sustentação da mentalidade machista vinculada a
tradição da moral dupla a respeito de como o adultério era concebido e tratado
entre os gêneros desde as sociedades antigas, além do que, para completar esse
quadro de violência contra a mulher, geralmente a mulher traída é incentivada a
tirar satisfações e a culpabilizar a amante mais que ao próprio marido, sendo que
este é que tinha compromisso com ela.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, M. F. Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações.
Psicologia, Ciência e profissão. V.22. N.2. P.70-77, 2002.
CAVALCANTI,
J. P. N. Reações a cenários de
infidelidade conjugal: são o amor e o ciúme explicações? 2007. 165f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social), Universidade Federal da Paraíba –
UFPB, João Pessoa, 2007.
DÓRIA,
C. A. A tradição honrada. In: Cadernos
Pagu. IFCH, UNICAMP, n. 02, 1994, p. 52.
DUBY, G. PERROT, M. História das mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna – volume 3.
Porto: Afrontamento, 1993.
OLIVEIRA M. E. Orkut:
O Impacto da Realidade da Infidelidade Virtual. 2007. 103 p. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –
PUCRio, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
<http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/9888/9888_1.PDF>. Acesso em: 21 de
DEZ. 2015.
RODRIGUES, M. A. O. Infidelidade online: uma nova modalidade de desestabilização nas
relações amorosas. Caruaru: FAVIP, 2010. 80 f. Disponível em:
<http://repositorio.favip.edu.br:8080/bitstream/123456789/727/1/TCC-+PDF.pdf>.
Acesso em: 21 de DEZ. 2015.
SAFFIOTI, H. I. B. O poder do
macho. São Paulo: Moderna, 1987.
Lizandra Souza.
Excelente texto, bastante completo e muito bem escrito!
ResponderExcluirObrigada, miga!
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