Um comportamento que vem me incomodando muito nos
espaços feministas virtuais consiste em algumas problematizações inócuas, como
as que questionam se "dá para ser feminista e ser cristã?" ou as que
perdem o teor de questionamento, logo de incerteza, e afirmam como verdade
universal a ser seguida que ''não dá para ser feminista e ser cristã'',
pergunta e afirmação essas que, geralmente, são levantadas aparentemente apenas
com o objetivo de gerar polêmica ou de deslegitimar vivências plurais, pois não
levam, na maioria das vezes, a uma discussão respeitosa, séria e útil.
Vou na contramão da reprodução dessa ideia e afirmo
que ser cristã, por si só, não impede nenhuma mulher de ser feminista. Ser
cristã fundamentalista, alienada e/ou intolerante é que impede a mulher de ser
feminista. Aliás, a impede não só de ser feminista, mas também de ser sensata.
Essas assertivas podem ser legitimadas se partimos da ideia genérica de que
feminista é a mulher que luta contra a violência de gênero, buscando o
empoderamento feminino e o fim do patriarcado e ser cristã pode significar
apenas a crença da mulher no Deus do cristianismo, sem deixar que essa crença
ou fé interfira de modo negativo na vida dela e na forma como ela interage socialmente
com outras mulheres.
A história das religiões hegemônicas, como as
cristãs no Ocidente, é fortemente marcada pela opressão às mulheres, através da
pregação da ideia da superioridade masculina e inferioridade feminina como
sendo um fato inato, inerente e inquestionável feito por Deus na divisão dos
gêneros e dos papéis sociais que cada um deles devem exercer de acordo com sua
biologia. Durante séculos a Igreja, por exemplo, foi conveniente com o
patriarcado, sendo esse uma de suas bases. Contudo, com os avanços sociais,
advindos da globalização, das tecnológicas digitais, dos movimentos e
revoluções sociais, nossa contemporaneidade fragmentou, descentralizou e
pluralizou o sujeito, fazendo com que ideias antes fixas e estáveis de
identidade cultural não tenham mais sentido de ser na pós-modernidade.
Com isso, muitas feministas conseguiram
problematizar discursos e práticas religiosas antes inquestionáveis, como
questões referentes a submissão feminina, ao divórcio, a violência doméstica,
ao ''direito'' do marido de estuprar a esposa por essa ser vista como sua
propriedade sexual, ao uso de métodos anticoncepcionais, a escolha da mulher de
não ser mãe, entre outras, que permearam as relações sociais, atingindo as
mulheres cristãs e não-cristãs. Muitas mulheres cristãs, ensinadas a não
questionarem a ordem masculina, pois isso seria uma blasfêmia contra Deus,
passaram a recusar discursos de aceitação e conformidade, questionando os papéis
sociais e culturais - construídos pelos homens para privilegiar os homens - que
lhes são impostos sem, para tanto, precisarem abdicar de sua fé em Deus, em uma
outra vida, etc. Diante disso, dizer que não dá para ser feminista e ser cristã
é dizer que essas mulheres cristãs não têm espaço dentro do movimento
feminista. É, portanto, excluí-las da causa, as deixando ao ''Deus dará'' e
contribuindo para que muitas continuem reproduzindo machismo e misoginia por
não terem a oportunidade de acesso ao feminismo ou, ainda, a oportunidade de
conviverem com mulheres solidárias, dispostas a ajudá-las em seu empoderamento
e tomada de consciência a respeito da violência de gênero.
Acredito que as mulheres que acreditam no Deus do
cristianismo, sem fundamentalismos, sem atitude de discriminar outras mulheres
que não seguem a mesma religião, que não têm a mesma fé, mulheres que sejam
religiosas, mas que critiquem o sistema, que não aceitem passivamente os
discursos dados, possam sim lutar pelos direitos das mulheres e, portanto,
serem feministas, incluindo, com isso, a possibilidade de problematizar a
própria instituição Igreja. Conheço mulheres católicas e evangélicas que são
feministas e que são favoráveis a legalização do aborto. Isso parece
contraditório, mas o sujeito pós-moderno realmente o é. Essas mulheres, por
suas crenças, alegam que não fariam um aborto, porém não julgam as mulheres que
fariam, não as condenam nem discriminam pelas decisões sobre o próprio corpo,
afinal autonomia corporal é uma das bandeiras-bases do movimento feminista.
Não dá para ser feminista e acreditar na submissão
feminina como algo natural e aceitável. Não dá para ser feminista e acreditar
que as suas decisões, as suas crenças e as suas opiniões são universais e devem
pautar a vida de outras mulheres. Não dá para ser feminista e ser fiscal da
vida de outras mulheres. Não dá para ser feminista e limitar as perspectivas e
as escolhas das outras mulheres para adequá-las a sua visão de mundo. Não dá
para ser feminista e ser cristã se você usa suas crenças ou religião para
subordinar, censurar, limitar ou discriminar outras mulheres que não seguem o
seu padrão de vida. Agora, ser feminista e vivenciar sua fé de forma individual,
não há problema nenhum.
Não estou tentando promover uma união entre
movimento feminista e religião com essa minha posição, muito menos deslegitimar
críticas acerca da religião, acredito que o feminismo não só pode como deve
criticar as instituições religiosas, os dogmas e os discursos religiosos
fundamentalistas, muitos dos quais contribuem com a sustentação do machismo, da
homofobia, da transfobia, do racismo, entre outras formas de discriminação,
assim como também deve problematizar as mulheres cristãs fundamentalistas que
normatizam suas crenças, impondo-as para outras mulheres, contudo, acredito que
para tal não é necessário ''expurgar'' a mulher de sua espiritualidade, crença
ou fé pessoal. Já disse Adélia Prado, "Mulher é desdobrável". Nós
somos.
Lizandra Souza.
Sou evangélica e feminista, gostei muito do texto!
ResponderExcluirÓtimo texto, também sou evangélica e parto do princípio que eu não tenho o direito de julgar as escolhas de outras mulheres
ResponderExcluirMuito bom texto, compartilho totalmente com esse pensamento!
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