"A favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos" - Carolina Maria de Jesus
Quarto de Despejo: diário de uma favelada, é um livro em
forma de diário, escrito por Carolina Maria de Jesus (1915-1977), mulher negra,
pobre, sem muita escolaridade, catadora de papel e lixo, solteira e mãe de três
filhos, à época da escrita, moradora da antiga favela do Canindé, em São Paulo.
Em seu diário, que se inicia no ano de 1955 e termina no ano de 1960, Carolina
registrou seu cotidiano pobre e humilde, assim como o das pessoas a sua volta,
as necessidades, carências e desmazelos que sofriam, advindos do descaso do
poder público, os conflitos entre os moradores da favela, a miséria que os
cercavam, além de apontar para fatos importantes da vida sócio-política do
Brasil daquela época, como a negligência política com a população menos
favorecida socioeconomicamente.
Não há como desvincular a obra com a vida
de Carolina, pois ambas se relacionam devido ao próprio formato do gênero
discursivo, o diário, escolhido pela autora para relatar suas vivências, os
acontecimentos a sua volta e seus sentimentos diante de seu contexto social
precário, desigual e injusto.
Nascida em Sacramento, comunidade rural
situada em Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus mudou-se para a capital
paulista em 1947, período histórico em que surgiram as primeiras favelas na
cidade. A despeito da pouca escolaridade, tendo cursado apenas os anos iniciais
do primário, ela reunia em sua casa mais de 20 cadernos com relatos sobre a
vida na favela, um dos quais deu origem ao livro Quarto de Despejo:
Diário de uma Favelada, publicado em 1960. Após o lançamento, o livro logo
ganhou três edições seguidas, tendo um total de 100 mil exemplares vendidos,
sendo traduzido para 13 idiomas e vendido em mais de 40 países.
O sucesso do livro deu a escritora a
oportunidade de sair da favela e ir morar numa casa de tijolos em um subúrbio,
porém as aquisições materiais de Carolina não foram muito distantes disso,
aquela época escritoras mulheres já eram facilmente esquecidas e mal
remuneradas, acrescentando-se a isso o fato de a escritora do Canindé ser negra
(sendo, aliás, considerada uma das nossas primeiras e importantes escritoras
negras brasileiras), o sistema de silenciamento feminino torna-se ainda mais cruel.
Dessa forma, Carolina morreu ainda sendo pobre e, quase, esquecida, apesar de
seu livro ter sido vastamente lido na Europa ocidental capitalista e nos EUA
como em países do chamado bloco socialista/comunista, revelando que
independente dos sistemas políticos, a obra da autora conseguiu promover
comoção e denúncia da realidade cruel das favelas e da desigualdade social
decorrentes da opressão de classe e raça.
A história da publicação do livro-diário
de Carolina, assim como a descoberta da escritora, por si sós já dão uma
história interessante e peculiar. Quase desiludida com editoras nacionais e
internacionais, após ter alguns manuscritos recusados para publicação, Carolina
viu a situação de recusa de sua obra acabar após conhecer o jornalista Audálio
Dantas, em abril de 1958, que encarregado de fazer uma matéria sobre uma favela
que se expandia na beira do rio Tietê, no bairro do Canindé, acabou conhecendo
Carolina e logo que soube de seus escritos viu nela uma porta-voz legítima da
vida em favela, alguém que tinha uma perspectiva de dentro, daquele meio, que
podia mostrar com maior veracidade e riqueza de percepções o cotidianos dos
favelados. Assim, ele desistiu de escrever a reportagem inicial e se encarregou
de ajudar aquela mulher subversiva, que não se submetia ao sistema de opressão
de gênero, classe e étnico que desfavoreciam-na socialmente, mas que não
subordinaram suas ideias e sonhos, a publicar sua obra, afinal, em um meio onde
o analfabetismo predominava, saber ler e escrever poderiam abrir portas e
Carolina sabia disso, tanto que com a publicação ela desejava ter casa e
comida, isto é, condições básicas a sua sobrevivência e a de seus filhos.
Ao dizer que escreve “a miséria e a vida
infausta dos favelados”, Carolina sintetiza com força de expressão a denúncia
que ela faz a respeito das condições de vida das pessoas que moram na favela,
pois na narrativa ela não fala somente sobre si, mas sobre as pessoas ao seu
redor, aliás, no próprio diário ela menciona que algumas vezes “ameaçou” os vizinhos
e disse que os mencionaria em sua obra, para revelar determinadas atitudes
entre eles que não são, a perspectiva dela, aprováveis. Dessa forma, os fatos
são contados a partir da opinião da autora, que protagoniza, por ser a voz
narrativa que descreve a si e o mundo a sua volta, em geral, os episódios
contados.
A fome é uma figura constante na obra.
Chega a ser uma personagem simbólica por permear a todo momento o cotidiano das
personagens. Carolina, para matar a fome dos filhos e dela própria, trabalhou
catando o lixo da cidade, como latas, papéis, papelões, ferros velhos, sucatas,
enfim, materiais que podiam ser trocados por comida ou dinheiro (para ser
gastado em comida). Muitas vezes, até mesmo comida do lixo a personagem era
obrigada (obviamente, por um sistema social de classe e raça excludentes) a
pegar para comer com os filhos. Seus filhos (dois meninos e uma menina), ainda
crianças, geralmente, ficavam em casa sozinhos (com exceção da filha Vera
Eunice, a mais nova, que as vezes Carolina se via obrigada a levar consigo)
aguardando a mãe chegar com algo para comer.
Ao contrário do que algumas pessoas que
não tenham lido o livro possam imaginar, Carolina não casou não porque não
haviam candidatos, mas por escolha própria. Ela via no casamento uma prisão na
qual a mulher sofre violência doméstica e não tem quem a ampare, pois o
matrimônio entre um homem e uma mulher pobres aumenta a exploração desta, que
passa a viver não só para sustentar a si e aos filhos, mas também a ter que
aguentar um marido que, naquele contexto, era sinônimo de homem agressivo, rude,
que batia e humilhava sua esposa na menor oportunidade. Mulheres saindo nuas de
seus barracos e pedindo socorro, pois seus maridos as queriam matar, são alguns
episódios de violência doméstica, de violência de gênero, mencionados pela
autora em seus relatos. Apesar de não querer casamento naquelas condições,
Carolina mencionou, durante seus relatos no diário, dois homens, os quais
passam por sua vida mantendo com ela alguma relação afetiva, um modesto
trabalhador que desejava casar com ela, o Manoel, e o outro, um cigano bonito e
charmoso, o Raimundo.
A partir de sua rotina de catadora de
lixo, de uma mulher em que a própria existência já era sinônimo de resistência,
Carolina nos mostra sua visão sobre a condição humana, sobre os pequenos
aspectos que lhe compõem e dão materialidade e, ainda (ou por isso mesmo), as
relações sociais desiguais, nas quais uns têm tanto, outros quase nada.
Apesar de linguagem da escritora ser, em
geral, simples e coloquial, fugindo das convenções gramaticais e algumas vezes
da ortografia oficial, há também algumas vezes o registro de algumas palavras
mais rebuscadas, o que ao invés de prejudicar a obra ou desmerecê-la, como
podem pensar os patrulheiros gramaticais, confere-lhe um caráter poético e de
maior realismo, fazendo de Carolina uma escritora da literatura-verdade ou como
Clarice Lispector falou, certa vez, sobre a escritora do Canindé, que ela
escrevia a verdade ou escrevia de verdade.
Diante desse quadro, através do diário de Carolina Maria de Jesus, nós podemos imaginar a triste realidade das favelas brasileiras, dos "quartos de despejos" da época assim como o cenário social e político de descaso para com os menos favorecidos, o qual ainda hoje reflete na nossa sociedade contemporânea, marcada pelos sistemas de dominação-exploração das mulheres, dos negros e pobres, minorias políticas que podem se ver representadas em Quarto de Despejo. A voz de Carolina é também a voz do povo brasileiro de ontem... E de hoje.
REFERÊNCIAS
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 7ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 7ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.
Lizandra Souza.
Publicado originalmente em:
http://loucurasedevaneiosbyliza.blogspot.com.br/2016/06/resenha-do-livro-quarto-de-despejo.html
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Feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente!