Ninguém é obrigado a achar cabelo
cacheado/crespo bonito. Aliás, ninguém nunca foi e, provavelmente, nunca será
obrigado a isso. Todavia, esse discursinho de ''é só uma questão de gosto'' não
deve ser usado para discriminar e ofender quem tem cabelo cacheado/crespo nem
para legitimar discursos e atitudes racistas ou preconceituosas. Até porque
''gosto'' é construção psicossocial e cultural. O gosto é padronizado, o gosto
da massa é branco, é magro, é elitizado. Não é coincidência. Ninguém nasce
achando cabelo liso mais bonito, pele branca mais bonita, corpo magro mais
bonito etc. Ninguém nasce achando cabelo cacheado/crespo feio, pele negra feia,
corpo gordo feio etc. Tudo é uma questão de internalização, aprendizado e
interação com a sociedade e com a cultura. Isso não significa que você deve
“desgostar” de uma coisa porque ela é padrão e gostar necessariamente de algo
que não o é. Significa repensar e reavaliar os próprios gostos, as próprias
impressões e percepções a respeito do mundo e dos sujeitos que cercam você.
Eu tenho atualmente 22 anos. Não lembro de
quando eu era criança ou de quando eu tinha meus 14, 15, 16 anos... de NINGUÉM
elogiando meu cabelo, me dando força para assumir meus cachos. Não lembro de
absolutamente ninguém dizendo "seu cabelo é bonito, Liz". Não quero
dizer, é claro, que eu nunca tenha escutado um elogio ao meu cabelo nessa
época, mas que foi tão raro isso acontecer nessas duas fases da minha vida que
não sobrou nem migalhas na minha memória. O que eu lembro e, talvez, nunca esqueça,
são dos deboches com o meu "cabelo de vassoura", as piadinhas que
diziam que eu me parecia com uma "bruxa" (quero) quando o cabelo
estava muito assanhado ou que ele cabia um monte de inseto, que eu tinha cabelo
duro (mesmo meu cabelo sendo tão macio quanto algodão), que eu ficava bem de
tranças (porque elas escondiam os cachos), que se eu o alisasse eu ficaria mais
bonita, entre tantas babaquices que, as vezes, escuto até hoje do meu “fandom”
de internet inconformado e revoltado com meus posts no facebook. Lembro da
falta de representatividade na TV, na mídia em geral. Lembro dos comentários
maldosos, dos conselhos de alisamento ou de baixa de volume não pedidos, das
risadinhas das "migas", de coisas chatas para caralho, mas que hoje
não me afetam mais em porra nenhuma.
HOJE esses comentários maldosos (quase) não me afetam, mas na época tudo isso
me destruía ao ponto de eu me olhar no espelho e me odiar. Ou melhor, achar que
me odiava, porque por mais que me incomodassem os discursos e atitudes
preconceituosas, jamais me deixei levar e sempre fui resistindo como podia,
apesar de muita dor e baixa autoestima. Bota baixa autoestima nisso. Durou
quase até o fim da minha problemática adolescência. Relacionem o cabelo
cacheado volumoso a uma adolescente nerd com tranças, óculos de grau, aparelho
ortodôntico, pelos excessivos nas pernas (sempre fui metida a lobiswoman),
baixeza e magreza excessivas e essa era eu mesma (ainda sou, na verdade). Eu
tinha o maior pavor de ser chamada de Letty a feia. Que bobeira, Angélica Vale
é rainha e eu descobri isso no fim da novela.
Agora, a coisa mudou de figura. Vejo
mulheres cacheadas e poderosas na mídia, novelas, capas de revista, comerciais
de tinta e produtos para o cabelo. De certa forma, virou “moda” ter cabelo
cacheado/crespo desde que ele seja definido, claro. Tudo uma questão
capitalista, mercadológica, mas que ajudou na aceitação e valorização das
mulheres cacheadas/crespas. Esses dias, fui no salão de beleza com minha mãe
para cortar nosso cabelo e uma moça que trabalha lá assim que me viu disse
“acho lindo cabelo assim”. Agradeci e quase automaticamente lembrei de um
episódio que aconteceu quando eu tinha 15 anos. Fui no salão cortar meu cabelo
e a cabelereira insistiu para eu alisá-lo. Minha mãe acabou entrando nessa
jogada e também insistiu muito. Eu aceitei, me sentei na cadeira, quando a moça
pegou os produtos e ia começar a mistura eu levantei e disse que não me sentia
bem, que estava com muita dor de cabeça e que faria outro dia. Nunca mais
voltei. Eu menti porque não tive coragem de dizer que não ia fazer aquela merda
só porque elas queriam. Eu menti porque foi mais fácil de engolir o choro por
aquela imposição e pressão toda comigo, uma menina de 15 anos assustada com uma
química tão forte e radical que é esse tal do alisamento permanente que de
permanente não tem nada que lhe tiraria uma parte de sua identidade, de si
mesma.
Hoje eu posso dizer que amo meu cabelo,
que o acho lindo e maravilhoso. Quando me olho no espelho, reconheço que uma
das partes de mim que mais me agradam é ele. E o movimento feminista me ajudou
muito nessa subversão de pensamento e resistência ao padrão vigente com suas
pautas de empoderamento feminino. Em grupos feministas de apoio eu li muitos
desabafos e relatos de mulheres com vivências semelhantes e, na maioria das
vezes, os comentários que elas recebiam, eu direcionavam também a mim, pois até
então eu era mais introvertida e não me sentia confortável em falar de mim
abertamente. O que mudou radicalmente quando me assumi feminista militante
alguns anos depois. Não acredito, todavia, que nenhuma pessoa deva achar cabelo
cacheado/crespo bonito. Assim como ninguém é obrigado a achar cabelo liso
bonito. Aliás, em se tratando de mim, por exemplo, ninguém tem que achar porra
nenhuma, a única pessoa que tem que gostar do que tem na minha cabeça sou eu.
Euzinha. Eu mesma melo.
Postei uma versão desse post no meu perfil
do facebook e sai correndo. No post e por inbox recebi alguns relatos, entre
eles o da Eduarda Reichert, adolescente de 14 anos que passa por situações
semelhantes ao que eu e tantas outras meninas cacheadas passam ou já passaram
pelo menos uma vez na vida. Ela autorizou a publicação de seu
depoimento no blog DDUF:
Nossa, eu vi seu texto sobre a aceitação do cabelo cacheado. Minha mãe é negra e meu pai é "alemão", e toda a família por parte dele. Eu era a única exceção, porque tinha a pele morena e os cabelos cacheados e a minha vó e os outros parentes sempre elogiaram MUITO meu cabelo mesmo de vez em quando sendo uns preconceituosos enrustidos, e eu lembro que pela primeira vez fui na casa de uma tia avó e ela toda hora me dizia "alisa esse cabelo, tenta uma coisa diferente, vai ficar mais bonito" e de quando eu estava na sala de jogos da minha escola e a bolinha de ping pong ficou enroscada no meu cabelo e começaram a tirar sarro. Foi por situações como essa e vendo todas as minha colegas de cabelo liso, até as que eram cacheadas alisar, que eu estava decidida que não queria mais. Pensei e pensei, até que tirei a conclusão que ia me arrepender depois, e realmente! Hoje eu amo demais o meu cabelo, aprendi a gostar dele do jeitinho que é, e principalmente também amar o meu corpo, que a situação foi pior ainda, na questão de preconceito. Se não fosse a internet acho que nem me amaria tanto assim, pois encontrei páginas, grupos, mulheres empoderadas e várias outras coisas que me levaram a me amar desse jeito que eu sou.
O coração dá uns pulos de alegria ao ler relatos
assim! O advento do feminismo virtual e dos grupos de apoio entre mulheres na
internet sem dúvidas estão fazendo seu papel em ajudar mulheres, independente
de suas idades, a se empoderarem, a se enxergarem como sujeitos
poderosos, decididos e livres para fazerem escolhas conscientes acerca de si
mesmas.
Outro depoimento interessante que tive
autorização para transcrever foi o do Walteric Juur (24 anos), estudante de
artes visuais. É interessante notar no relato do Wateric que essa questão do
preconceito com cabelo cacheado/crespo não atinge só mulheres, sendo assim não
é uma questão em si de gênero, mas étnica e/ou estética, apesar de atingir
sobretudo mulheres, em especial as negras.
Eu sou um dos poucos da parte da minha família paterna que herdei os lindos cacheados e sempre me depreciavam. meu pai não podia me ver com dois dedos de cabelo que ele mandava cortar feito militar, aquele bem baixinho, que eu odiava porque eu não queria e era imposto. Resultado, passei anos sem saber que eu tinha cachos e só descobri depois que comecei a socializar com pessoas diferentes, as quais tinham cabelo cacheado e falavam de cabelo cacheado, e olha que em 2006 as coisas para cabelo cacheado eram bem escassas, não têm essas infos que você citou que temos hoje né. Foi tudo, pois deixei meu cabelo crescer, enfrentei vários "teu cabelo tá bagunçado", "seu preguiçoso", "não combina contigo" e é incrível que as pessoas falam dos nossos cachos, mas não da mesma forma que cabelos lisos. Certo dia experimentei fazer chapinha, só para dar aquela mudada porque eu posso né, aí vi muita gente falando que combinou mais, que não sei o que... sabe? Como se eu ficasse "completo" de cabelo liso, mana eu também não me segurava e tacava um "eu uso como quero, mas meu cabelo é cacheado e sempre vai ser" e ficavam calados. Ai que gente chata né?
Não achar cabelo cacheado/crespo bonito é
muito diferente de opinar para a pessoa cacheada/crespa que o cabelo dela é
feio ou que você não gosta dele. Essa necessidade racista ou preconceituosa
(preconceituosa porque o gosto da massa não diz que cabelo liso é feio, não
presta, é ruim etc) de sair por aí falando mal do cabelo de uma pessoa que não
está nem aí para sua opinião de merda pode ser resolvida se você pegar sua
opinião e guardá-la bien en medio de buraquito de su cu.
Abaixo, transcrevo o relato da Nah Barros (21 anos), feminista, que nos conta
sobre seu processo de transição e aceitação de seu cabelo crespo e de como a
representatividade foi importante no momento da decisão de assumir seus cachos
e deixar o alisamento no passado.
Eu me vi na metade do seu intenso maravilhoso texto, porque estou em processo de transição (ainda quero muito fazer um texto sobre isso mais bem mais para frente), então eu percebi coisas ao meu redor que estavam me deixando muito mal, a ponto de eu não querer mais saber de nada e ficar só no quarto dormindo. Eu não sabia que tudo isso era por causa do meu cabelo... graças a minha irmã que fez enroladinhos no meu cabelo e quanto soltou eu fiquei maravilhada, vi que na verdade eu tinha deixado um belo crespo se esconder por anos. Fiquei furiosa comigo mesma e ainda estou e também um pouco com a minha mãe,| por alisar ele há mais de 8 anos... enfim, entre os últimos procedimentos qe fiz, comecei a ver um monte de negras maravilhosas como você citou aí... no face com seus blacks de tudo quanto é jeito, foi então que tomei a atitude de parar de vez e voltar para o crespo, até porque não via mais "graça" no meu cabelo escorrido. Representatividade é muito importante sim!!!! E não tenho palavras para descrever o quanto estou feliz e agradecida por ter conhecido/visto essas fotos e me deparar com a mesma realidade que a delas. Você sente e sabe lá no seu íntimo que nunca esteve sozinha, só não achou as pessoas certas para te entenderem. Então, obrigada por esse texto. E mais uma coisa, sou muito mais feliz com ele assim mesmo com duas texturas do que quando era liso, sinto-me mais bonita e feliz por dentro, não sei explicar. Só sei dizer que para o liso pretendo não voltar mais.
Meninas cacheadas/crespas, vocês não estão
sozinhas e são mais, muito mais, que discursos preconceituosos... são mais que
o que os outros querem que vocês sejam. Não vale a pena se forçar a um padrão
somente porque pessoas alheias acham que vocês deveriam segui-lo! Se for para
vocês alisarem seus cabelos, que seja porque vocês realmente querem e vão se
sentir melhor com isso e não porque fulano ou ciclano falaram mal do seu
cabelo. O importante é sentir-se bem. Não sou adepta de determinismos biológicos
do ''nasceu assim tem que morrer assim'' ou "tem que se aceitar como
é". Podemos ser metamorfoses ambulantes! Podemos mudar! Podemos nos
reinventar! Acredito que as mulheres na busca de seu empoderamento podem e
devem usar os mecanismos necessários para sua autossatisfação. Alisar o
cabelo, pintá-lo, usar maquiagem, não usar maquiagem, fazer depilação ou não
fazer depilação, entre outros, pode ou não se aliar no empoderamento da
mulher, na forma como ela enxerga a si mesma e expressa sua beleza.
Acha cabelo cacheado/crespo feio? Guarde
sua opinião para quem a pedir, no mais, tire seu gosto, seu preconceito e sua
opinião de merda do nosso cabelo que nós vamos passar!
Gracias!
Lizandra Souza.
Show!
ResponderExcluirEsse texto mexeu comigo, me fez lembrar minha época de escola , faz menos de um mês que assumi o meu cabelo, na época de escola todo mundo falava para mim alisar e na faculdade todo minhas amigas pedeia para me assumir. Como que as coisas são controversas, levei um tempão para me aceitar e justo hoje resolvi postar a primeira foto no Face com cabelo black seu texto motivou muito obrigada
ResponderExcluirEsse texto mexeu comigo, me fez lembrar minha época de escola , faz menos de um mês que assumi o meu cabelo, na época de escola todo mundo falava para mim alisar e na faculdade todo minhas amigas pedeia para me assumir. Como que as coisas são controversas, levei um tempão para me aceitar e justo hoje resolvi postar a primeira foto no Face com cabelo black seu texto motivou muito obrigada
ResponderExcluirConheço uma história que a mãe espancou a filha por ela ter o cabelo cacheado e isso é muito triste por que ela é a mãe ,ela devia ser a primeira a apoiar a filha,mais não ela bateu nela•
ResponderExcluirÉ isso mesmo !! , cansai de ver pessoas falando que o cabelo crespo é ruim !, isso tem que mudar , isso é uma forma de inferiorizar as pessoas , o meu cabelo não é ruim !, não existe cabelo ruim , existe o preconceito doentio das pessoas .
ResponderExcluirMinha mãe já me falou uma vez que não gostava do meu cabelo cacheado (Meu cabelo é muito, tipo é muito fio mesmo), depois que fiz uma escova orgânica apenas para abaixar o volume, to mundo amou meu cabelo.
ResponderExcluirEu só posso falar que prefiro meus cachos, porque faz parte de mim, da minha identidade.