Pular para o conteúdo principal

LITERATURA FEMINISTA: CRÔNICAS, (MINI)CONTOS, POEMAS, RESENHAS E MAIS!

Os olhos de Ana




Era um fim de tarde bonito. Calmo. Estávamos cada uma com sua folha de papel, entretidas e caladas. No fim ia ter disputa de qual era o desenho mais bonito. Só quebrava o silêncio o grito da gavião fêmea numa das árvores. Sinal de marcação de território e proteção de seu ninho.
De vez em quando nos olhávamos. Pra ver algum sinal de quem terminaria primeiro. Eu estava absorta, das outras vezes tinha desenhado algo. Se é que aquele borrão sem expressão podia ser um desenho. Dessa vez queria estar escrevendo. Comecei a escrever. Saiu um poema ordinário, fruto do tédio.
Ela terminou e eu não tinha desenhado nada. Perdi.
Fomos conversar sobre banalidades, então ela me falou que a turma da sala dela iria a um encontro de estudantes no cinema do shopping perto da escola nos próximos dias. A professora iria acompanhar os alunos. Iriam assistir a um filme... perguntei se ela já tinha falado com sua mãe.
''Ainda não''. Sua expressão ficou séria. Seu olhar vagou por entre as árvores ao redor da casa. Quando eu já estava cogitando que ela tivesse receio de receber um não de sua mãe, ela me disse que acha que quando crescer, não vai ter vontade de sair de casa. Que não quer sair de casa... porque tem medo. Medo do que todas nós temos. Medo de ser estuprada. Medo de sofrer essa violência.
Eu fiquei em choque. Eu esperava ouvir qualquer coisa da minha priminha de 7 anos, menos isso. Vendo que eu não falei nada para continuar a conversa (talvez achando que eu não me importasse com seu medo, não interpretando que ele era meu também), ela se explicou. ''Vi em um programa... a história das mulheres arrastadas em becos escuros... a apresentadora disse que pode acontecer em qualquer idade... o estupro...''. A gavião gritou, nos assustando com um possível ataque apesar de estarmos há alguns metros de distância de sua árvore. Saí daquele entorpecimento desagradável... a chamei para dentro de casa... ela continuou: tinha também uma menina, quase da minha idade, ela amava o avô dela, mas um dia ele entrou no quarto dela com uma faca e a estu... (dessa vez ela não completou a palavra, disse apenas isso e fez um gesto com as mãos). Ela andou de um lado para o outro.
Eu poderia ter falado com Ana sobre a cultura do estupro e da pedofilia. Poderia ter citados dados. Poderia ter falado de patriarcado. Poderia ter falado de feminismo. Poderia ter falado muita coisa se ela não fosse uma criança. Meu receio não foi de ela não assimilar, mas sim o contrário. O brilho da infância podia estar por um fio. O medo eu vi nos olhos dela. Ela deve ter visto nos meus também. Menina esperta.
Lhe disse que nós mudaríamos isso um dia, que essa violência teria fim, que ela poderia sair de casa tranquila, que ela teria uma vida feliz. Que nós teríamos. Que eu também tenho medo, mas não desisto... que se um dia alguém tocar nela... ela devia falar pros pais e familiares próximos... tentei dizer mais coisas, mas elas não quiseram sair... ficaram presas em algum lugar dentro de mim.
Alguns minutos depois a menina foi pintar o desenho das caveirinhas que ela fez. Enquanto ela pintava, eu mergulhava em devaneios. As palavras de força e resistência que eu queria dizer e que não saíram deviam estar presas dentro dos olhos de Ana.
Na dor e no medo também existem luta.


Lizandra Souza.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

10 comportamentos que tiram o valor de um homem

   Hoje em dia os homens (cis, héteros) andam muito desvalorizados. Isso faz com que muitos sofram amargamente nas suas vidas, sobretudo na vida amorosa.  Outro dia eu estava vendo uns vídeos de forró, funk, sertanejo e fiquei chocada com o comportamento vulgar dos rapazes. Agora deram pra ralar até o chão como um bando de putinhos a busca de serem comidos... e a gente, mulherada, já sabe que se o boy rala o pinto no chão é porque ele é um homem rodado, um mero bilau passado.    Antigamente, no tempo de nossas avós, o homem era valorizado pelo seu pudor virginal, não pela sua aparência. Homens eram um prêmio a ser alcançado pelas mulheres, eles tinham que ser conquistados, ganhados. Hoje em dia, muitos machos estão disponíveis para qualquer mulher num estalar de dedos. Escolhe-se um macho diferente a cada esquina. E a mídia ainda insiste em dizer que homem pode dar pra quantas ele quiser, fazendo os machos assimilarem uma ideia errada e vulgar que os levarão a serem infe

História do adultério: modelos de comportamentos sexistas com dupla moral

Belmiro de Almeida - Arrufos, 1887 A história do adultério é a história da duplicidade de um modelo de comportamento social machista, possuidor de uma moral dupla, segundo a qual os homens, desde quase todas as sociedades antigas, tinham suas ligações extraconjugais toleradas, vistas como pecados veniais, sendo assim suas esposas deveriam encará-las como "pecados livres", que mereciam perdão, pois não era o adultério masculino visto como um pecado muito grave (a não ser que a amante fosse uma mulher casada), enquanto as ligações-extraconjugais femininas estavam ligadas a pecados e a delitos graves que mereciam punições, pois elas não só manchavam a honra e reputação da mulher adúltera, mas também expunham ao ridículo e ao desprezível seu marido, o qual tinha a validação de sua honra e masculinidade postas em jogo. Esse padrão social duplo do adultério teve sua origem nas culturas camponesas "juntamente com a crença de que o homem era o provedor da família e era

O super-piroca

Era uma vez um homem que se gabava muito de sua piroca. Era a piroca isso, a piroca aquilo. Se não chovia no Nordeste, era falta de piroca no clima. Se o pão queimava, era falta de piroca no padeiro. Se as enchentes invadiam alguma cidade, era falta de piroca no saneamento... Se as as mulheres iam às ruas lutar por direitos... aí sim que era falta de piroca mesmo. Para Piroconildo somente uma coisa poderia resolver as dificuldades das pessoas: uma piroca. Ou várias. Mas não para por aí. As coisas que ele achava como sendo boas também estavam relacionadas à piroca, à presença dela... Seu primeiro emprego, resultado de sua piroca. Sua cura de uma doença rara, sua piroca e a piroca do médico... Se seu time de futebol ganhasse um jogo, fora por causa da piroca. Seu sobrinho passou no vestibular por causa da piroca. Sua tia ganhou na loteria, por causa da intuição da piroca do marido. Certo dia, numa rua qualquer, Piroconildo encontrou uma lâmpada mágica, quando ele passou a

Glossário de termos usados na militância feminista (atual)

Já participou daquele(s) debate(s) feminista(s) e vez ou outra leu/ouviu uma palavra ou expressão e não soube o significado? E cada vez mais, em debates, você passou a ler/ouvir aquela(s) palavra(s)? E o tempo foi passando e mais termos e expressões foram surgindo? E o pior, você pesquisou no Google o significado e não achou? E as palavras, muitas vezes, não existiam nos dicionários formais? Se você respondeu sim, em pelo menos duas perguntas, aconselho conferir o glossário virtual a seguir, no qual pretendo expor e explicar brevemente alguns dos termos e expressões mais usados no meio do ativismo, em especial o virtual. Além dos vários termos e expressões que são usados há décadas nos meios feministas, nós temos também muitos termos e expressões usados atualmente na militância feminista que são fenômenos advindos dos estudos contemporâneos de gênero, outros, ainda, são resultantes da própria necessidade de ressignificação que determinadas palavras sofreram para terem determi

"We Can Do It!": você conhece a origem de um dos grandes símbolos do movimento feminista?

We Can Do It! de J. Howard Miller, 1943. We Can Do It! (Nós podemos fazer isso!) é a legenda de uma das imagens mais conhecidas do movimento feminista. Foi bastante usada a partir do início dos anos 80 do século passado para divulgar o feminismo, desde então várias releituras foram sendo feitas da imagem da moça trabalhadora, usando um lenço na cabeça,  arregaçando as mangas, mostrando um musculoso bíceps e passando a ideia de que "sim, nós mulheres podemos fazer isso!" (sendo este "isso" as atividades tradicionalmente convencionadas aos homens*) ao mesmo tempo em que  se desconstrói a ideia machista de "mulher sexo frágil". Contudo, o que muitas pessoas não sabem é que a imagem foi criada algumas décadas antes, em 1943, e que não tinha nenhuma ligação com a divulgação do feminismo. We Can Do It! originalmente foi um cartaz idealizado para ser uma propaganda de guerra dos Estados Unidos, criada  por J. Howard Miller para a fábrica Westinghouse El